sábado, 27 de agosto de 2016

Ofício das rezadeiras resiste mesmo com avanço da Medicina



A professora Juliana Nara Cavalcante, 28, tem quatro filhos e todos eles, algum dia, já foram para uma das quase dez rezadeiras que ainda vivem no município de Banabuiú, na região central cearense. "Uma vez, a minha filha mais velha começou a vomitar e ficar com o corpo mole. Não tinha nenhuma reação. Minha irmã se desesperou dizendo que ela iria morrer. Eu levei para avó do meu esposo. Ela rezou duas vezes e a menina saiu de lá andando", relata a professora.

A medicina evoluiu, as técnicas de tratamento são outras e a modernidade do novo século trouxe novas formas de combater doenças em tempos recordes. Mas levar o filho para uma rezadeira é um hábito que permanece vivo na cultura do cearense, principalmente em cidades do interior, onde a tradição é ainda mais forte.

Quixadá, Boa Viagem, Quixeramobim e Canindé, são exemplos de cidades que ainda concentram um grande número de mulheres com esta habilidade. Muitas são reservadas. Outras estão com idade tão avançada que mal conseguem falar. Mas ainda rezam.

Quebranto
Em Banabuiú, a prática de levar um filho para "tirar o quebranto", sobrevive desde o tempo em que a cidade foi emancipada. No fim da tarde, é comum vê-las nas calçadas, sentadas em cadeiras de balanço, segurando um ramo de alguma planta. Tem sempre uma delas impondo a mão sobre uma criança, deslizando folhas sobre a face dos pequenos e fazendo orações em profunda reflexão. Mariluza Lobo Pinheiro é uma das mais emblemáticas da cidade. Com 74 anos, ela exerce a atividade para tratar de problemas como torções, rompimento de nervos no pescoço e para eliminar sintomas do mau olhado, conhecido como quebranto.

"Uma vez, a menina chegou quase morta. Eu fiz meus pedidos a Deus e ela acordou. Tem vez que uma só oração dá certo. Noutras ocasiões, é preciso orar três vezes", explica. Com essa espiritualidade, Mariluza tem mais de 30. A intuição foi passada pelo pai quando estava prestes a morrer. "Faço isso até hoje, em qualquer pessoa" , disse.

Graça
O pai falecido da filha de Marília Batista era médico. Mas sempre que a pequena estava doente não era para o hospital que ela levava a menina. Era para casa da Mariluza. "Até cinco anos, a Mariluza pediu a graça de Deus sobre minha filha porque dizia que a menina tinha muito mau olhado. Uma vez, ela pegou um ramo e passou na garota. O ramo estava verde e quando ela terminou, o ramo estava seco, estalando". Em Quixadá, a 170 km de Fortaleza, José Cordolino Dultra tem 79 anos e detém uma lucidez que impressiona. Na hora de pedir a saúde por meio da oração, então, a concentração é ainda maior. Há quase 60 anos ele é procurado pelos moradores da região para exercer os poderes de suplicar a cura.

Ele garante que problemas de engasgo são o mau que mais combate. "Teve uma vez que veio uma menina engasgada com uma espinha de peixe de Ibaretama. Foi ao hospital de lá e no daqui de Quixadá e não deu certo. Quando foram transferir pra Fortaleza, tiraram ela do hospital e vieram aqui. Comigo, ela cuspiu a espinha pra fora".

O dom, como conta, tem que ser desenvolvido, e teve a ajuda do pai e de um amigo. De lá pra cá, garante: "Eu livrei mais de 500 pessoas de ir para Fortaleza com negócio de engasgo. A pessoa chega aqui. Não tem hora, não. Se chegar quatro horas da manhã, eu rezo", disse.

Para o doutor em antropologia e pesquisador da cultura das rezadeiras, Adalberto de Paula Barreto, a tradição ainda se mantém forte. "Faz parte da cultura popular e está arraigado no nosso imaginário, na mesma linha de quando você pede a bênção e a pessoa responde Deus te dê saúde, fortuna e felicidade".

Atavismo
Para Adalberto, as tradições remetem a figuras atávicas, do passado, que eram responsáveis por funções de tratamento de problemas socioculturais, espirituais e biológicos. As orações vêm de influências católicas e da cultura afro brasileira.

"A rezadeira é um sincretismo dos pajés com os rituais, rezas católicas e, dependendo da região, com sincretismo afro. Aqui no Ceará é mais o indígena e católico", pontua. Ele diz que há uma diversidade nos dons.

Restrição
Em seus levantamentos, Canindé se mostrou como a cidade da região com o maior número de rezadeiras. Por lá, ele já catalogou 200 delas. Mas, com o tempo, Adalberto acredita que o número diminua. "Elas são bem velhinhas e a tendência é diminuir. Tem umas que conseguem repassar para os netos, mas outras, não", afirma ele, que acredita piamente na intercessão espiritual. "Esse é o primeiro recurso de quem está doente".

Para o Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) não existe nenhuma restrição ou consideração negativa quanto à prática de rezas e sugestões de remédios naturais de rezadores pelo Interior. A igreja não se manifesta sobre o assunto.

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